Desde o alvorecer da era espacial, a NASA e outras agências têm gastado bilhões de dólares para explorar Marte – tomando-o de assalto com voos de espaçonaves, satélites com máquinas fotográficas e sondas que se jogam em direção à sua superfície. Há boas chances, segundo muitos cientistas, de o Planeta Vermelho abrigar vida alienígena – boas o suficiente para justificar as décadas de pousos de sondas robóticas caríssimas que se dedicaram a vasculhá-lo com radares, explorá-lo com lasers, rodar pelo terreno e escavar sua poeira. No entanto, contra todas as probabilidades (e as esperanças dos pesquisadores para uma descoberta divisora de águas), Marte continua a ser um mundo que esconde suas cartas. Não surgiram sinais convincentes de vida. Contudo, os astrobiólogos continuam, literalmente, a cavar para encontrar a verdade.
À medida que a pesquisa se torna mais acalorada (alguns diriam mais desesperada), os cientistas estão cogitando um número cada vez maior de explicações possíveis para o fato de a biologia marciana não ter ainda aparecido. Por exemplo: poderia haver um “encobrimento” com o qual o áspero ambiente marciano, de alguma forma, apaga todas as bioassinaturas – todos os sinais de vida passada ou presente? Ou talvez a vida seja tão estranha que suas bioassinaturas são simplesmente irreconhecíveis para nós, que não conseguimos identificá-las ainda que estejam visíveis.
Naturalmente, a espantosa tarefa de encontrar vida em Marte pode ter uma solução simples: ela não existe e nunca existiu. Porém, como os anais da Conferência Científica sobre Astrobiologia deste ano – realizada nos Estados Unidos em abril – deixaram claro, os cientistas que buscam por vida ainda não desistiram. Em vez disso, estão ficando mais criativos, propondo novas estratégias e tecnologias para moldar a próxima geração de exploração de Marte.
O jeep-robô Curiosity, da NASA, em Marte.
Uma biosfera adormecida?
Discuta sobre a busca por “marcianos” e inevitavelmente se falará sobre água, o líquido quase mágico que sustenta toda a vida na Terra e parece ter servido como um indispensável pontapé inicial para a biologia no passado mais profundo do nosso planeta. “Tudo começou com ‘seguir a água’, não necessariamente ‘seguir a vida’… Mas sim ‘seguir um dos requisitos básicos para sistemas vivos’”, diz Jack Farmer, geólogo da Universidade Estadual do Arizona, referindo-se ao mantra frequentemente repetido pela NASA na exploração marciana. “Existem muitas indicações da existência de água em Marte no passado, talvez reservatórios de água nos subsolos mais superficiais também”, diz ele. “Entretanto, qual é a qualidade dessa água? Ela é realmente salgada – salgada demais para a vida?”
Sem água líquida, Farmer aponta, alguém ingenuamente pensaria que os organismos não conseguem funcionar. A realidade pode ser mais complexa que isso: na Terra, alguns organismos resilientes, como os tardígrados, podem entrar em um profundo e quase indefinido estado de hibernação quando privados de umidade, preservando seus tecidos dissecados, porém sem crescer ou se reproduzir. É possível, segundo Farmer, que os micróbios marcianos possam ter passado a maior parte do tempo como esporos inertes “esperando que algo de bom acontecesse”, só desabrochando para a vida sob as condições adequadas e muito raras. Certas variedades de “extremófilos” terrestres – micróbios que vivem em extremos de temperatura, pressão, salinidade e assim por diante – exibem comportamento semelhante.
Farmer diz que ainda não existe um consenso geral sobre a melhor maneira de detectar vida no Planeta Vermelho. Isso se deve, em grande parte, ao ritmo desenfreado de progresso na biotecnologia, que leva a inovações como laboratórios de química encolhidos para caber em um chip de computador. Essas tecnologias “estão revolucionando o campo da medicina e agora começam a entrar nos conceitos para a detecção de vida em Marte”, explica. As coisas se movem tão rápido que a melhor tecnologia de hoje para encontrar a biologia marciana amanhã pode já estar obsoleta e em vias de morrer.
Contudo, não importa o quão sofisticado um laboratório-em-um-chip possa ser, ele não entregará resultados se não for enviado para o lugar certo. Farmer suspeita que procurar com seriedade por vestígios de vida requer perfurações profundas em Marte. “Basicamente, acredito que precisaremos ter acesso ao subsolo e procurar por registros fósseis”, explica. Porém, descobrir uma clara e inequívoca bioassinatura fóssil em Marte também levantaria uma bandeira vermelha. “Provavelmente nos aproximaríamos do futuro da exploração de Marte – acessando, particularmente, zonas habitáveis de água líquida no subsolo profundo – mais cautelosamente, porque a vida ainda poderia estar lá. Assim, a proteção planetária seria levada muito a sério”, diz ele. (“Proteção planetária” é o termo o qual cientistas geralmente utilizam para precauções que minimizam a chance de contaminação biológica entre mundos. Não pense nisso tanto como aliens com olhos de inseto correndo desenfreadamente pela Terra, mas sim em robôs bilionários encontrando “marcianos” que se descobre serem apenas bactérias resistentes que viajaram de carona, e vieram de nosso próprio planeta).
O subterrâneo de Marte
Penelope Boston, diretora do Instituto de Astrobiologia da NASA no Centro Ames de Pesquisa da agência, tem as mesmas ideias sobre um “mergulho profundo” em Marte. “Esse é minha inclinação”, diz ela. “Dado o estado atual de Marte, com todas as manifestações superficiais desafiadoras de secura, radiação e pouca atmosfera, a melhor esperança para a vida ainda existente no planeta é subsuperficial”. O subsolo, diz ela, também pode oferecer melhores chances de preservar a vida passada – isto é, de fósseis, mesmo que apenas de organismos unicelulares.
As profundezas do planeta têm o potencial de abrigar água líquida sob algumas circunstâncias, acredita Boston. Mas o quão longe da superfície essa água pode estar? “Suspeito que esteja bem longe… E como chegaremos lá é uma questão totalmente diferente”, ela diz. No decorrer dos anos, cientistas estimaram a profundidade média dos possíveis reservatórios do planeta em algo entre dezenas de metros e quilômetros. Novamente, observações recentes de sondas satélites em órbita revelaram misteriosas faixas escuras que fluem sazonalmente pelos lados iluminados de algumas encostas e crateras marcianas. Essas “linhas de declive recorrentes” poderiam ser concebidas como salmouras de água líquida alimentadas por aquíferos muito próximos à superfície, segundo alguns pesquisadores.
Tais incertezas persistentes surgem da natureza indireta e dispersa de nossos estudos sobre Marte e garantem que qualquer argumento para a vida lá é baseado apenas em informações circunstanciais, observa Boston. “Cada pedaço de evidência é, por seus próprios méritos, fraco”. Somente acumulando um diverso conjunto de medidas independentes, uma hipótese bem construída sobre a vida em Marte pode ser feito, ela diz: “Na minha opinião, não podemos ter essa hipótese a menos que nos esforcemos para fazer todas essas medições precisamente no exato local. Não fazemos isso porque é muito difícil, mas é algo a buscar.” Apesar de décadas enviando equipamentos caros para Marte, Boston acredita que ainda falta uma sensação de harmonia entre instrumentos, permitindo que eles trabalhem juntos para apoiar a busca pela vida alienígena. “Eu acho que os requisitos de uma reivindicação realmente robusta de vida a escala microscópica nos obrigam a avançar mais”, observa ela.
Os participantes da reunião de astrobiologia no Arizona mostraram uma variedade de dispositivos de alta tecnologia para a próxima geração de exploração, que vão desde “analisadores de vida” microfluídicos e extractores de ácidos nucleicos integrados para estudar “metagenômica marciana” a laboratórios de química orgânica primorosamente sensíveis e miniaturizados para detectar compostos de carbono e minerais em escalas microscópicas. Nessa mistura, no entanto, faltou um consenso sólido sobre como essas e outras ferramentas poderiam trabalhar em conjunto para fornecer uma detecção precisa de vida em Marte.
Qual é o clima?
Alguns cientistas afirmam que um novo foco é extremamente necessário. Talvez o caminho para encontrar qualquer marciano espreitando pelos cantos do planeta seja saber onde exatamente em Marte existem nichos que, potencialmente, estimulam a vida e como eles mudam ao longo de dias, meses e anos, ao invés de éons de tempo geológico. Ou seja, para encontrar os lares da vida existente em Marte hoje, os pesquisadores provavelmente não deveriam estar estudando o clima do planeta apenas a longo prazo, mas também o de seu dia-a-dia.
“Agora estamos, de certa forma, mudando de velocidade. Uma vez que você descobriu que um planeta é habitável, a próxima pergunta é: ‘Havia vida lá?’ – então, é uma situação completamente diferente”, diz Nathalie Cabrol, diretora do Centro Carl Sagan do Instituto SETI. “Em Marte, não se pode buscar por vida com as ferramentas com que temos procurado pela habitabilidade do planeta”, argumenta. “Deveríamos estar à procura de hábitats, não de ambientes habitáveis. Em Marte, lidamos com o que eu chamo de ambientes ambientes hiperextremos para extremófilos”, ela diz, “e não dá para procurar por vida microbiana a partir de telescópios orbitando o planeta”.
Cabrol defende um estudo sem precedentes e de alta resolução da variabilidade ambiental em Marte, salpicando sua superfície com estações meteorológicas. Mais cedo ou mais tarde, sinais reveladores do possível paradeiro da vida existente podem emergir das torrentes de dados resultantes. “O ambiente de hoje no planeta é um reflexo de algo que está no passado”, diz ela, e implantar várias estações automatizadas em Marte não precisa sair caro. “Isso é de interesse não apenas para a astrobiologia, mas também para a exploração humana. A primeira coisa que você quer saber é como está o tempo”, ela diz, acrescentando: “não estamos preparados para fazer isso agora, e não estou dizendo que será fácil procurar por vida. Também não estou dizendo que o que estamos fazendo agora está errado. Aprendemos com tudo aquilo que colocamos no chão. Porém, há variabilidade em Marte. Você sobe ou desce um metro e as coisas mudam. Habitats, a um nível microscópico, podem acontecer ao longo de um declive. Podem ocorrer ao longo de uma rocha!”
Podemos ser marcianos?
“Acredito que Marte nos oferece as maiores chances de encontrar vida em algum lugar além da Terra”, diz Dirk Schulze-Makuch, cientista planetário da Universidade Estadual de Washington. Entretanto, como Boston e outros, ele sustenta que a confirmação de vida virá somente com múltiplas “camadas de provas” as quais sejam consistentes entre si. “Realmente precisamos de ao menos quatro tipos diferentes de métodos”, segundo ele. “Meu ponto é: não há um tiro certo. Necessitamos de vários instrumentos. Você precisa construir uma hipótese e, agora, podemos fazer melhor… A não ser que a bioassinatura esteja acenando através de um microscópio.” O problema, ele acrescenta, é que regras de proteção planetária muito rigorosas podem impedir de conseguir as evidências necessárias para obter as provas. “Possuímos tecnologia para ir aos lugares onde pode haver vida”, ele diz. “Porém, não podemos ir a certas áreas de Marte, como linhas de declive recorrentes ou… Sob fragmentos de gelo. Isso parece ser ridículo.”
De fato, Schulze-Makuch especula que a proteção planetária talvez seja um caso perdido para Marte – ou, ao menos, um esforço equivocado. Micróbios marcianos talvez até mesmo sejam primos perdidos dos terrestres. Ou, de forma inversa, Marte seja o único local de biogênese no nosso Sistema Solar, ao invés da Terra. Ambos os cenários são possíveis, considerando que organismos unicelulares podem sobreviver a impactos que danificam um mundo, e também podem sobreviver às subsequentes viagens interplanetárias, desde que embarcados em pedaços de rocha ejetados que poderiam viajar para outro lugar, como os meteoritos. Inumeráveis impactos nessa escala maltrataram o Sistema Solar há bilhões de anos, potencialmente destruindo material biológico entre mundos vizinhos. Na média, diz Schulze-Makuch, “as chances de sermos marcianos são maiores.”
Leonard David
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