Era uma vez, nos recuos sombrios de uma caverna que se encontra onde hoje é o norte da Espanha, um artista que aplicou com cuidado tinta vermelha nas paredes da caverna criando um desenho geométrico – um símbolo em forma de escada composto de linhas verticais e horizontais. Em outra caverna, a centenas de quilômetros ao sudeste, outro artista pressionou sua mão na parede e espalhou tinta vermelha ao redor dos dedos para criar um registro da sua mão, trabalhando com a oscilante luz do fogo, uma lâmpada de óleo ou então na escuridão. Em uma terceira caverna, localizada no extremo sul, formações de calcita que parecem uma cortina foram decoradas em tons de escarlate.
Embora não haja nenhuma marca dos artistas para estabelecer sua identidade, os arqueólogos assumiram há tempos que as pinturas das cavernas seriam assunto unicamente dos Homo sapiens. Outro grupo de humanos com cérebros grandes, os Neandertais, viveram nessa mesma época e local, e podem ser os criadores de algumas das artes das cavernas europeias. No entanto, apenas o H. sapiens tinha uma cognição sofisticada o bastante para desenvolver um comportamento simbólico, incluindo arte. Ou então, era o que muitos experts pensavam.
P. Saura |
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Símbolo em forma de escada na parede da caverna La Pasiega no norte da Espanha que data 65.000 anos, o que significa que ela deve ter sido pintada por um Neandertal |
No momento, as datas obtidas das imagens dessas três cavernas na Espanha poderia colocar a prova esse pensamento antigo. Em um artigo publicado essa semana na revista Science, pesquisadores reportaram que algumas das imagens são muito mais velhas do que o primeiro fóssil descoberto dos H. sapiens na Europa, o que indica que eles devem ter sido criados pelos Neandertais. As descobertas mostram novos aspectos da mente dos nossos frequentemente difamados primos. Elas também levantam questões chave sobre a origem do pensamento simbólico, e o que, exatamente, distingue o H. sapiens dos outros membros da família humana.
As consequências dessa datação das pinturas vêm como um reconhecimento há muito aguardado pelos Neandertais, que tem uma má reputação desde o começo dos anos 1900, quando a paleontóloga a francesa Marcellin Boule reconstruiu um esqueleto neandertal do local conhecido como La Chapelle aux Saints, na França, e o descreveu como algo semelhante a um macaco bruto. Nas décadas seguintes, os cientistas descobriram que os Neandertais eram muito mais parecidos conosco fisicamente do que Boule havia suposto.
Eles também descobriram que os Neandertais e H. sapiens confeccionaram os mesmos tipos de ferramentas de pedra por um milênio.
Por muito tempo, era indiscutível que a questão mais significante que distingue os Neandertais e os homens modernos é que os primeiros não criavam ou usavam símbolos. Enquanto o H. sapiens deixou joias, esculturas e pinturas em cavernas – todos produtos de um pensamento simbólico – nenhum desses itens podia ser atribuído aos Neandertais. Nos últimos anos, no entanto, evidências do comportamento simbólico dos Neandertais foram se acumulando em diversos locais pela Europa. Em Gibraltar um Neandertal esculpiu um símbolo igual ao de hashtag na base rochosa de uma caverna. Na croácia, os Neandertais colheram garras de águias e fizeram colares com elas. Em locais por Gibraltar e pela Itália os Neandertais caçaram pássaros para pegar suas penas, talvez para usar como capas cerimoniais. Na Espanha, os Neandertais fizeram jóias de cascas e misturaram tintas brilhantes que podem ter sido usadas como um tipo de cosmético. Em uma caverna na França, os Neandertais ergueram paredes semicirculares de estalactites, possivelmente com um propósito ritualístico. Há ainda mais achados.
Ainda assim, uma característica chave da expressão simbólica parece faltar no repertório neandertal: a pintura em cavernas. As espetaculares pinturas nas cavernas de ovelhas, rinocerontes, mamutes e outros animais da Era do Gelo que estão em locais famosos como Chauvet e Lascaux na França, entre outros exemplos, foram todas atribuídas aos primeiros homens modernos. Na ausência de evidências ambíguas que indiquem o contrário, os cientistas assumiram que todas as pinturas nas cavernas vinham provavelmente do trabalho manual do H. sapiens.
No entanto, em 2012, pesquisadores liderados pelo arqueólogo Alistair Pike, que agora está na Universidade Southampton, na Inglaterra, fizeram uma descoberta que desafiava essa suposição. A equipe datou dezenas de pinturas das cavernas da Espanha e achou várias mais antigas do que se pensava anteriormente. Uma imagem, um disco vermelho na caverna El Castillo, tem pelo menos 40.800 anos de idade – é antigo o suficiente para ser a arte de um Neandertal e quase velha demais para ser uma criação do homem moderno. (Não se cogita que o H. sapiens tenha chegado à Europa antes de 42.000 anos atrás.) Numa coletiva de imprensa que anunciava as descobertas de 2012, um dos autores, João Zilhão, da Universidade de Barcelona, declarou que qualquer arte na Europa mais antiga do que 42.000 anos de idade deve ser atribuída aos Neandertais.
Seis anos depois, em um novo estudo, Pike, Zilhão e seus colegas dataram as pinturas de 3 cavernas localizadas em regiões diferentes da Espanha: La Pasiega em Cantabria, Maltravieso em Extremadura e Ardales em Andalucía. Embora as cavernas contenham um misto de imagens figurativas e não-figurativas, os pesquisadores focaram seus esforços na última variedade. “Nós descobrimos em nosso estudo de 2012 que as imagens mais antigas que encontramos eram: linhas vermelhas e não figurativas, pontos, símbolos e contornos de mãos – então para [esse] projeto, focamos em pinturas similares a essas,” explica Pike.
Como no estudo de 2012, a equipe determinou a idade das pinturas usando uma técnica radiométrica chamada datação por urânio-tório, que se baseia no decaimento radioativo do urânio em tório que ocorre com o tempo. Mais especificamente, os pesquisadores obtiveram amostras das crostas finas que se formaram em cima das pinturas e analisaram o teor de tório para medir a idade da crosta, que fornece uma idade mínima para a pintura subjacente. Seus esforços foram fortemente recompensados: a análise mostra que as 3 cavernas contêm pinturas datando de, no mínimo, 64.8000 anos atrás. Os Neandertais na Espanha estavam então fazendo arte nas pedras por mais de 20.000 anos antes que o homem moderno chegasse à Europa.
Outros pesquisadores elogiaram o novo estudo. “Uau!” disse Genevieve von Petzinger, uma doutoranda da Universidade de Victoria que foca sua pesquisa em símbolos pré históricos. Ela nota que quando Pike e seus colaboradores levantaram a possibilidade de artistas Neandertais em 2012, vários cientistas entraram em transe e argumentaram que não havia nenhuma razão para creditar os Neandertais, ao invés dos homens modernos, pelas imagens em El Castillo. “Isso me deixa boquiaberto,” diz Petzinger sobre as novas pinturas datadas. “Com uma datação de 65.000 atrás, não é possível que tenha sido criado por humanos modernos.”
As datas não apenas apontam que os Neandertais faziam arte, elas sugerem que os eles tiveram essas ideias por si próprios. Quando os arqueólogos começaram a descobrir os sinais do simbolismo neandertal, a evidência encontrada remontava ao finalzinho do período em que os Neandertais reinaram, uma época em que os homens modernos já tinham se estabelecido na Europa. Alguns pesquisadores postularam que os Neandertais estavam simplesmente copiando seus vizinhos, os humanos modernos, sem realmente entenderem o que estavam fazendo.
As novas datas convenceram os proponentes dessa ideia do contrário. “Eu acho que a explicação mais parcimoniosa da evidência atual é que os Neandertais é que deveriam estar fazendo essas representações,” diz Thomas Higham, da Universidade de Oxford, na Inglaterra, que não estava incluso na pesquisa e que está datando locais pela Europa para desenvolver a cronologia do deslocamento dos Neandertais devido a chegada dos humanos modernos. “Digo isso como alguém que por muito tempo acreditou que homens modernos recém-chegados, que conviveram com os Neandertais por volta de 45.000 a 40.000 anos atrás, fossem responsáveis pelo desenvolvimento tardio do comportamento simbólico dos Neandertais (talvez um tipo de ‘imitação sem entender direito’) logo antes de desapareceram.”
Poderiam essas pinturas antigas, ao invés disso, serem um sinal de que o H. sapiens chegou à Europa antes do que os registros fósseis indicam? Afinal, as descobertas recentes em outros locais do mundo sugerem que a nossa espécie se originou e começou a se espalhar para fora da África milhares de anos antes do que se pensava. “É possível,” diz Higham, “mas não há evidência disso ainda.”
Se os Neandertais tiveram uma tradição de pintar cavernas, então os pesquisadores precisarão se questionar se o comportamento Neandertal realmente difere daquels dos humanos modernos de alguma forma importante. Uma escola de pensamento acredita que os modernos puderam tomar o lugar os Neandertais em virtude de seu intelecto superior e de suas capacidades simbólicas, incluindo a linguagem.
Alguns especialistas desconsideram alguns exemplos da arte neandertal, como a gravação da hashtag em Gibraltar, pois a acham previsivelmente não interessante quando comparada com a arte figurativa moderna que os humanos fizeram. Von Petzinger discorda. “Quando os pesquisadores fazem piadas sobre a sofisticação da arte Neandertal, eu acho que eles não veem a real importância disso,” ela observa. “O grande salto cognitivo está deixando uma marca de forma gráfica; é a habilidade de guardar informações fora do seu corpo.” Em um sentido geral, ela diz, a criação de sinais abstratos “marca o primeiro passo em direção a linguagem escrita.”
“O que é preciso agora é uma ampla análise de outros exemplos de arte em caverna que utilizem das mesmas técnicas para explorar outros casos em potencial, diz Higham. Pike e sua equipe estão tentando fazer exatamente isso. Contornos de mãos e discos podem ser encontrados por toda a Europa”, observa Pike. “Gostaríamos de começar a datar arte fora da Espanha também para examinar se a arte neandertal estava tão disseminada quanto os próprios neandertais”.
Kate Wong