Na véspera de Natal de 1968, os astronautas Frank Borman, Jim Lovell e Bill Anders, da missão Apollo 8, se tornaram os primeiros seres humanos a contemplar o “nascer da Terra”, a partir da órbita da Lua. A foto que mostra o planeta flutuando em meio à escuridão do Universo, como uma lua crescente, se tornaria o primeiro registro do nosso “pálido ponto azul” visto de fora.
“Essa foto começou a fazer com que as pessoas, antes demais nada os próprios cientistas, começassem a olhar pra Terra de outra maneira”, afirmou o professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo José Eli da Veiga, no colóquio “Conversa Sobre o Sistema Terra”, realizado na USP, em abril.
Mais de cinco décadas depois, essa nova forma de enxergar o planeta continua a inspirar os cientistas na elaboração de conceitos que vêm ganhando cada vez mais destaque nos últimos anos, como a ideia de Antropoceno, que define a Época em que o meio ambiente e as estruturas naturais da Terra são impactadas pelas ações humanas.
Isso ficou evidente para os brasileiros em agosto, quando o céu escureceu em São Paulo, trazendo resíduos de queimadas da floresta amazônica — resultado de um aumento no desmatamento de 278% no mês de julho, em relação ao mesmo período de 2018, segundo o Inpe.
O climatologista Carlos Nobre, um dos maiores especialistas sobre mudanças de clima na Amazônia, explica que 80% da floresta é quase impenetrável ao fogo, por ser um ambiente úmido e denso. Somente 4% da radiação solar chega ao solo. “Esse é um sistema que levou milhões de anos para evoluir”, afirma o cientista que, em 2007, foi um dos autores do relatório sobre o aquecimento global do Painel Intergovernamental em Mudanças Climáticas (IPCC), vencedor do Nobel da Paz.
“Quando a gente quebra esse sistema da maneira que nós estamos quebrando é lógico que isso é o Antropoceno. Do mesmo jeito que se jogam hoje 50 milhões de toneladas de gases de efeito estufa na atmosfera, de uma forma que nunca fizemos antes na história da humanidade, fazemos também com a Amazônia.”
Homem primata, capitalismo selvagem
No recém-lançado “O Antropoceno e a Ciência do Sistema Terra” (Editora 34), o professor José Eli da Veiga se dedica a explicar os conceitos citados no título do livro, que se referem, respectivamente, a essa nova Época e à ciência que busca integrar diferentes disciplinas (das biológicas às sociais) a fim de entender melhor o funcionamento do planeta.
Apesar do empenho de cientistas de diversas áreas na última década, a ideia de Antropoceno ainda não foi oficializada. Segundo Eli da Veiga, isso deve ocorrer “por unanimidade, ou quase” no próximo Congresso Internacional de Geologia, que vai acontecer em Nova Delhi, na Índia, em 2020.
Isso porque, seguindo a cronologia aceita atualmente, a Terra vive o período do Holoceno: “Um ínfimo lapso de doze milênios, inteiramente distinto de tudo que o precedeu em 4,5 bilhões de anos de história planetária”, como escreve Eli da Veiga. A estabilização climática dessa etapa foi o que deu o pontapé no surgimento da agricultura e no desenvolvimento da espécie humana. Mas, segundo os especialistas, essa estabilidade dos últimos doze mil está no fim, desde que os homens passaram a influenciar a natureza de maneira artificial. Para distinguir essa nova etapa é que os cientistas têm apostado no termo “Antropoceno”.
Apesar dos impactos causados pela Revolução Industrial, no século 18, foi desde meados do século 20 que as constantes pressões exercidas pela humanidade nos ciclos biogeoquímicos (como os do carbono e do nitrogênio) se tornaram mais evidentes.
Como ressalta Eli da Veiga, basta lembrar que, de todo o gás carbônico lançado pelos humanos na atmosfera, três quartos foram emitidos nos últimos 70 anos. Nas três últimas gerações, o número de carros passou de 40 milhões para 850 milhões; e a produção de plástico saltou de um milhão de toneladas para 350 milhões de toneladas. “Somados à erosão da biodiversidade e à acidificação dos oceanos, esses rapidíssimos saltos caracterizam o que está sendo cada vez mais entendido como a ‘Grande Aceleração’”, escreve.
Reconhecer o Antropoceno é uma forma de também reconhecer e refletir sobre o impacto humano no planeta, a fim de, entre outras coisas, conter a aceleração antes que não existam mais recursos a serem explorados, causando o fim da própria humanidade, como sugerem interpretações apocalípticas do futuro.
“Em 4,6 bilhões de anos, é a primeira vez que uma espécie, no prazo de poucos séculos, está mudando a Época geológica”, afirma o climatologista Carlos Nobre. “Esse reconhecimento vai gerar um movimento mundial para sabermos que nós nos tornamos os autores dessa mudança.”
Apesar das estatísticas refletirem a tendência humana de rumar para o colapso, em seu livro, Eli da Veiga chama a atenção para o conceito de “catastrofismo esclarecido”, de Jean-Pierre Dupuy, que rejeita a ideia de um futuro destruído, “mas propõe que se faça como se o destino fosse a catástrofe, de modo a conseguir que os piores cenários passem a ser levados mais a sério, o que poderá contribuir para que desastres sejam evitados”.
“Se não houver uma guerra nuclear, com a qual a humanidade se auto-exterminará, então será possível — e até provável — que sejam encontradas as soluções que permitirão ultrapassar os grandes desafios ambientais do Antropoceno”, afirma o professor ao Yahoo!. “Nas últimas décadas surgiram significativas mudanças de opinião e de comportamento, que estão gerando novas instituições, mais adequadas à gestão social do problemas ambientais que definem o Antropoceno. Não há garantia de que a parada esteja ganha, mas também não há motivos para se decretar esse tal ‘colapso’ global, como fazem os ‘colapsólogos’.”
Para o especialista, o pensamento apocalíptico pode soar alienante e desempoderador a ouvidos inclinados ao conformismo. “Os que estão convictos de que não escaparemos de um apocalipse até 2040, os ditos ‘colapsólogos’, só nos estimulam a atitudes do tipo: ‘Se é inevitável, então, relaxe e goze’. Por que a juventude iria se mobilizar agora para as ações globais do 20 de setembro se acreditasse nessa tosca profecia?”, afirma Eli da Veiga, referindo-se à Greve Global pelo Clima, convocada por movimentos estudantis e sociais para chamar atenção às urgências climáticas.
Na década de 1950, o astrônomo Fred Hoyle já se atentava para o surgimento de novas formas de perceber o mundo, que talvez só estejam se oficializando agora. “Uma vez que o completo isolamento da Terra se torne evidente para todo homem, independente de sua nacionalidade ou crença, uma nova ideia, a mais poderosa do que qualquer outra na história, será liberada”, escreveu ele, no livro “A Natureza do Universo”. “Eu acredito que esta não tão distante revelação poderá ser benéfica, com o efeito de expor cada vez mais a futilidade das rixas nacionalistas. É exatamente deste modo que a Nova Cosmologia pode vir afetar toda a organização da sociedade.”