Bacteria e Archaea são dois dos três domínios da vida. Ambos devem ter evoluído a partir de um suposto Último Ancestral Comum (LUCA, na sigla em inglês). Uma hipótese é que isso tenha ocorrido porque a membrana celular do LUCA seria uma mistura instável de diferentes tipos de lipídios. Recentemente, cientistas da Universidade de Groningen e da Universidade de Wageningen criaram uma forma de vida a partir de uma membrana mista e descobriram que ela é, na verdade, estável, refutando esta hipótese. Os resultados serão publicados na revista Proceedings of the National Academy of Sciences nessa semana.
Há muitas ideias sobre como a vida celular poderia ter evoluído há bilhões de anos. Protocélulas podem ter se formado em minerais de argila, ou podem ter se formado como simples vesículas lipídicas. Neste último caso, algo chamado “divisão lipídica” teria ocorrido, criando domínios separados: Archaea e Bacteria, explica Arnold Driessen, professor de Microbiologia Molecular da Universidade de Groningen. “As membranas lipídicas de ambos os domínios são diferentes, e possuem fosfolipídios que são ‘espelhados’ um em relação ao outro.”
Membranas Mixtas
Em termos técnicos, os lipídios da membrana da bactéria são feitos a partir de cadeias lineares de ácidos graxos que se misturam mais facilmente com o glicerol-3-fosfato da estrutura. Contudo, os lipídios na membrana da Archaea têm uma coluna de glicerol-1-fosfato, à qual os terpenóides estão conectados por ligações de éter. Terpenóides são uma classe onipresente de componentes orgânicos, presentes em muitos sabores, cores e fragrâncias diferentes.
Universidade de Wageningen |
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Uma célula modificada com alta produção de lipídio de Arquaea, mostrando irregularidades lobulares na membrana celular. |
A ideia por trás da divisão lipídica é que existiu um antepassado comum para ambos, Bacteria e Archaea, que possuía uma membrana celular em que ambos os tipos de lipídios estariam juntos. “Essa membrana mista seria menos estável do que uma membrana homogênea, feita de apenas um tipo de fosfolipídio. Então, eventualmente, a divisão teria ocorrido, resultando nos dois domínios Bacteria e Archaea”, diz Driessen.
Como tudo isso teria acontecido há mais de 3,5 bilhões de anos, não há provas. Por isso, Driessen e seus colegas decidiram aplicar a técnica de “engenharia-reversa” em um microorganismo com uma membrana mista. “Esse experimento já foi realizado antes, mas resultou em uma bactéria com apenas pequenas quantias (menor que 1%) de lipídios de Archaea.”
No entanto, no novo estudo, a quantidade de lipídios de Archaea aumentou para 30%. Duas descobertas-chave possibilitaram este resultado. “Em pesquisas prévias, descobrimos uma enzima crucial para a produção de lipídios da membrana de Archaea. Isto exigiu três etapas e, até então, apenas duas das enzimas envolvidas eram conhecidas.” A outra descoberta veio dos cientistas da Universidade de Wageningen, explica Driessen. “Eles conseguiram aumentar a produção de terpenóides na bactéria E. coli”.
Ambas as novas descobertas foram aplicadas a uma bactéria E.coli normal, o que foi um grande feito de engenharia genética. “Não sabíamos se o resultado seria uma célula viável”, diz Driessen, mas deu certo. Com um pequeno ajuste, os cientistas criaram uma célula em que todo o fosfatidilglicerol, os lipídios que formam uma bicamada básica na membrana bacteriana, foi substituído por seu equivalente de Archaea, o archaetidilglicerol. Isso correspondeu a 30% dos lipídios da membrana. ”Essa bactéria cresceu numa velocidade normal e permaneceu estável”. Diz Driessen. “Esse resultado não sustenta a hipótese de que uma membrana mista seja inerentemente instável e que teria levado à divisão lipídica”.
Driessen observa que as enzimas de Archaea usadas na produção da membrana de lipídios são menos específicas nas reações que catalisam do que suas equivalentes nas bactérias. “Elas parecem ser mais ‘primordiais’. Então a evolução da especificidade da enzima poderia ser um estímulo para a divisão”. Há, é claro, uma dificuldade principal: o experimento foi feito em bactérias E. coli modernas, que evoluíram 3,5 bilhões de anos após a divisão inicial com a Archaea.
“A resistência dessas células mistas nos surpreendeu. Nós esperávamos ter mais problemas para mantê-las vivas. Afinal o que projetamos é uma nova forma de vida”. As células modificadas eram mais alongadas do que as originais E. coli. Quando a produção de lipídios da Archaea se tornou muito grande, o crescimento desacelerou e a membrana desenvolveu apêndices lobulares.
Para além das implicações evolucionárias, a descoberta pode gerar novas pesquisas: “por exemplo, poderíamos criar um sistema de expressão em bactérias para proteínas de membrana do tipo Archaea, como aquelas produzidas por hipertermófilos que crescem em condições de alta temperatura e pressão”.
Universidade de Groninger